A noção de memória remete tanto aos mecanismos de acumulação individual de informações quanto aos processos coletivos de compartilhamento de representações sociais. Assim, o uso da memória pode servir como instrumento de afirmação identitária, como um patrimônio formador de uma identidade coletiva (1). E neste processo formação, vários atores se apresentam como agentes articuladores da memória coletiva se utilizando de diversos instrumentos, tais como comemorações, datas festivas, currículos escolares, monumentos, prédios públicos e a retomada de certas tradições (2), com o objetivo de atuar no tempo presente de acordo com uma estratégia política estabelecida.
Este trabalho de “enquadramento da memória” (3) é realizado por agentes de diferentes áreas do conhecimento, organizações públicas ou privadas, clubes, órgãos de imprensa e qualquer outra célula de reflexão como, por exemplo, as Escolas de Samba.
Trata-se de um conjunto de intervenções de diversos atores que objetivam produzir lembranças comuns a uma dada sociedade, envolvendo não só aquilo que deve ser lembrado e valorizado, como também aquilo que deve ser esquecido. Memória e esquecimento, longe de serem pares opostos, são na verdade complementares, pois é no processo de formulação de novas memórias que se observa o constante esquecimento de outras (4).
Assim, através de uma construção deliberada de vazios narrativos nos discursos oficiais, os agentes públicos que executam a política de memória frequentemente se utilizam de alguns instrumentos para “comandar o esquecimento” (5).
O problema que se coloca em longo prazo para as memórias que foram propositalmente relegadas ao esquecimento, é o de sua transmissão intacta e despercebida pelo aparelho enquadrador até o dia em que elas se aproveitam de uma ocasião para invadir o espaço público e passar do “não-dito” à contestação e à reivindicação. Foi o que aconteceu no último desfile de carnaval do Grupo Especial das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, quando a campeã Mangueira colocou em primeiro plano os atores propositalmente esquecidos pelas “narrativas canônicas da história brasileira” (6).
Embora quase sempre acreditem que “o tempo trabalha a seu favor” e que “o esquecimento e o perdão se instalam com o tempo” (7), os dominantes frequentemente são levados a reconhecer que o longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, conduz à resistência aos excessos praticados pelos discursos oficiais.
O desfile idealizado pelo artista Leandro Vieira, com o apoio de vários profissionais de história, pode ser considerado um exemplo dessa resistência e nos ajuda a refletir a respeito das políticas de memória e do esquecimento, e também sobre as diferentes formas e estratégias que podem ser utilizadas contra a onda conservadora que toma conta da Terra Brasilis.
(1) HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
(2) HOBSBAWN, Eric. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: paz e terra, 1997.
(3) POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.2, n.3, p.3-15, jun. 1989, p. 10.
(4) FERREIRA, Maria Letícia M Mazzucchi. Políticas da memória e políticas do esquecimento. Aurora (PUCSP. Online), v. 10, p. 102-118, 2011.
(5) MICHEL, Johann. Podemos falar de uma política de esquecimento? Revista Memória em Rede, Pelotas, v.2, n.3, ago.-nov.2010, p. 20.
(6) ANPUH RESPONDE: por Keila Grinberg, Hebe Mattos e Martha Abreu. https://anpuh.org.br
(7) POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.2, n.3, p.3-15, jun. 1989, p. 9.
Daniel Levy de Alvarenga é formado em Direito e em História pela PUC-Rio. Mestre em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), linha de pesquisa “Patrimônio, Ensino de História e Historiografia”. Doutorando em Direito pela Universidade Autônoma de Lisboa (UAL), desenvolvendo pesquisas sobre patrimônio cultural material e imaterial.