Uma escola acontece mais nos corredores do que nas salas de aula. Assim é muitas vezes, quando conversar e conviver parecem uma dupla inimiga dentro de sala e amiga fora dela. Num corredor entre uma aula e outra, num corredor antes ou depois das aulas, num corredor durante o intervalo, qualquer conversa informal pode revelar qualquer coisa em comum entre aluno, professor, inspetor, diretor, a mesma linha de ônibus que tomam para chegar até a escola, os filmes que viram no fim de semana, alguma memória de infância. Nesses diálogos estarrecedores, é encantador perceber que professores, assim como alunos, comem morangos no café da manhã. Uns e outros preferem um caminho a outro, uma música a outra, uma banalidade a outra. Os corredores, simétricos à sala de aula, liberam uma energia pedagógica que a sala de aula burocratizou.
Mas nem isso basta porque, quando nos juntamos e conversamos, fica clara a necessidade de se trabalhar com urgências. Serventes, seguranças, cozinheiros participam menos dos corredores de uma escola, que fazem a vez de uma fronteira entre os saberes da sala de aula e os saberes que não circulam pelos corredores. O corredor da escola é uma fronteira entre currículos, entre os saberes considerados dignos de serem ensinados, e aqueles alijados do processo de formação tal como instituído pela sociedade e pelo Estado na escola. Os saberes que não participam do currículo escolar nem costumam frequentar os corredores consistem em práticas de cuidado: cuidado com a comida e a alimentação, cuidado com a limpeza e a higiene, cuidado com o patrimônio e a segurança. Cozinheiros (quase sempre mulheres), seguranças (quase sempre homens) e serventes são, quase sempre, negros. Esse conjunto de saberes e práticas Mariana Oliveira, ex-aluna do Colégio Pedro II e hoje universitária, chamou de pilares pretos.
Soube-se quem eram as merendeiras somente quando elas, não no cotidiano instituído, mas no cotidiano de ocupação, ensinaram os estudantes a cozinhar. Soube-se quem eram os funcionários da limpeza somente quando os estudantes cuidaram da limpeza do espaço. Soube-se quem eram os jardineiros quando eles ensinaram o nome e a função das plantas e das flores, conhecimento que não foi adquirido por eles na escola nem na universidade, mas pelo trabalho. Os saberes interseccionados multiplicavam o interesse e a busca pelo que ainda não fora descoberto. A luta pela resistência naquele território se fez pelos caminhos estranhos das expressões artísticas. O cuidado com o espaço era cultivado pela estima, que substituía o dever diário. De maneira inaugural, a escola comportou práticas sociais periféricas e populares em contexto de ensino-aprendizagem. Palestras sobre candomblé, oficinas de poesia e jongo, rodas de debate sobre sexualidade e samba, improviso de rap, festas, feiras de funk aconteceram justamente ali na escola, que muitas vezes marginaliza todas essas manifestações. O corpo. A arte incluía os corpos reprimidos e invisibilizados, num processo profundo e incontornável de humanização. A estranheza em ver um estudante não uniformizado no ambiente escolar tem a força de uma passeata. A comunidade. Numa ocupação secundarista – assim como nas ocupações universitárias – toda a comunidade do entorno se movimenta junto.
Luiz Guilherme Barbosa
Professor de português e literaturas no Colégio Pedro II e doutor em teoria literária pela UFRJ. Escreve aos domingos sobre relações entre arte e literatura, arte em contexto digital, arte e política, e outras formas de desvio.