Édouard Glissant, o pensador dos arquipélagos, nos narra que a noção de pluralidade está na gênese da episteme contemporânea. Ela se constitui como proposta discursiva de leitura do mundo, atenta ao caminho para o Diverso. A exortação do Diverso choca-se, contudo, com o arcaísmo colonial. Este, de alicerce racista e patriarcal. Os rastros do colonialismo se fazem presentes a todo o momento, intoxicando relações, silenciando vozes, reificando corpos. Assassinando-os.
Grada Kilomba, artista portuguesa, radicada em Berlim, traz em suas Desobediências poéticas, atualmente na Pinacoteca de São Paulo, os desdobramentos de sua pesquisa em torno das memórias da plantação[1]. As desobediências propostas por Kilomba organizam uma poética, que discute a colonização do saber.
Em Illusions Vol. I, Narcissus and Echo (2017), a artista revisita o mito ontológico, que se torna veículo de desmonte do conceito de branquitude, a partir de uma aproximação metafórica entre Narciso e o ocidente. Obcecado pela sua própria imagem, se mesmeriza ao seu mero reflexo, como objeto de amor, e reduz Eco ao silêncio e ao exílio. O narcisismo da nossa sociedade, como no mito, prova-se fatal.
Já em llusions Vol. II, Oedipus (2018), Grada fricciona a peça seminal de Sófocles, e sua posterior interpretação psicanalítica, para discutir a marginalização e o genocídio impostos aos corpos negros, enquanto alvos de uma violência convencionada e condicionada a práticas coloniais, que se arvoram à dominação perpétua.
Influenciada pelo pensamento de Frantz Fanon (1925-1961), a obra da artista nos interpela a compreender de que forma os ímpetos inconfessáveis da Trilogia Tebana foram, ao longo dos séculos, transferidos pelo colonialismo nx sujeitx negrx. Estamos a falar da naturalização de uma de uma agressividade e sexualização do corpo negro. Gradualmente, x sujeitx negrx tornou-se tela de projeção daquilo que x sujeitx brancx teme reconhecer sobre si mesmx.
Ambos os trabalhos se estruturam a partir de uma estética minimalista, cuja forma expositiva audiovisual recupera a oralidade ancestral dos griots, contadores de histórias da África imemorial, guardiões da palavra e das tradições. O gesto pelo resgate da tradição oral na obra da artista se associa à dicotomia problematizada pela pensadora bell hooks entre sujeito e objeto. bell argumenta que o sujeito é aquele capacitado de definir suas próprias realidades, formar suas próprias identidades e nomear suas histórias. Enquanto ao objeto cabe uma definição alheia sobre a sua relação com os sujeitos.
A estratégia em abordar histórias de um imaginário branco, como Édipo e Narciso, a partir de uma linguagem metafórica, reflete o interesse da artista em se assenhorear de uma narrativa colonial para renomeá-la de acordo com uma leitura pluralista. Esta, erigida sobre o terreno da alteridade. A poética de Grada avoca a primeira pessoa, doma a sua própria realidade, por meio de um tensionamento do racismo diacrônico.
A ambivalência conceitual da alteridade na obra de Kilomba vai além do desejo de desmantelamento dos sistemas de opressão pós-colonial. Não se pode simplesmente se opor ao racismo, vez que no espaço vazio, após a resistência, ainda persiste a necessidade de ocupar e torna-se o novo. Sujeito.
A descolonização do saber oferecida pela artista parte de um agir estético que reexamina as estruturas de dominação coloniais, tomando como ponto de partida a própria linguagem. O escrutínio decolonial da língua portuguesa, por exemplo, expõe uma virulência patriarcal e racialista, que só faz reproduzir o trauma e a violência, contaminando o diálogo e fustigando semânticas emancipatórias
Em Kilomba, a estética e a política caminham juntas em direção à ruptura da praxis colonial, a qual aprisiona e violenta o Diverso, abrindo caminho para a construção de uma ética da alteridade. Ao denunciar os vícios na linguagem, a sua poética ataca o germe do colonialismo, que, como uma ferida aberta, nunca foi tratada.
O convite da artista à desobediência imprime novo sentido à emergência decolonial e se soma a muitas poéticas que atualmente problematizam a herança do colonialismo. Ao recordar do enigma da esfinge na tragédia edipiana, concluímos que para não ser devorado, é preciso decifrar. Grada nos ensina ser preciso desobedecer para se tornar.
[1] Título do livro escrito por Kilomba, lançado em 2019 no Brasil pela Editora Cobogó.
Pietro de Biase é advogado. Participou do Laboratório de pesquisa e prática de texto em arte do Parque Lage. Atualmente, integra o programa Imersões Curatoriais da Escola sem sítio.