o capítulo “sobre o surrealismo etnográfico” presente no livro “a experiência etnográfica” de james clifford é o ponto de partida para pensarmos a relação entre o movimento artístico vanguardista que foi o surrealismo e a institucionalização da etnografia (antropologia) enquanto ciência na frança do século xx.
tanto o surrealismo quanto a etnografia, nesse contexto da paris dos anos 20 e 30, compartilhavam uma série de congruências. o self niilista se faz presente tanto nos surrealistas quanto nos etnógrafos da época. para exemplificar melhor podemos elencar um autor de cada movimento e que de certa forma estão percorrendo esse mar do “surrealismo etnográfico”: antonin artaud, do lado dos surrealistas e michel leiris, do lado dos etnógrafos. artaud e leiris servem para serve para reforçar o self niilista dos pensadores de ambos os movimentos, algo que podemos identificar de prontidão no “teatro e seu duplo” de artaud com seu teatro da crueldade e na “áfrica fantasma” de michel leiris, um diário de campo e pessoal sobre o percurso do antropólogo, seus questionamentos e inquietudes em solo africano.

também podemos pensar na questão ritual enquanto ponto de congruência entre os dois autores que nos ajudam a navegar nesse mar entre surrealismo e antropologia – na literatura de ambos a questão ritualística é central: enquanto artaud utiliza o ritual como modo de contaminar o fazer teatral, como modo de abdicar da palavra como central, michel leiris observa o mesmo sobre o prisma da tauromaquia e da escrita solitária, por exemplo.
o “surrealismo etnográfico” fica entendido então como o movimento teórico de certos pensadores que transitavam no universo acadêmico e artístico da época, parte de um “arranjo artificial” da cultura, como chama clifford; surrealismo e etnografia compartilham o princípio de que o outro é objeto crucial para a pesquisa moderna – e por isso vão investigar e, de certa forma, exotizar o outro, mesmo que esse outro esteja nos arredores de sua própria cidade, como é o que andré Breton, um dos precursores do movimento surrealista, faz ao tomar a cidade como “fonte do inesperado” em seu livro “nadja”, como leiris faz no já citado “áfrica fantasma” e artaud em “os tarahumaras”.
esse ensaio, aqui dividido em partes, tem a pretensão de esmiuçar alguns pensadores e artistas que transitaram na paris surrealista – pensando em aprofundamentos futuros e da relação da própria vanguarda surrealista com a arte contemporânea pretendemos relacionar questões de artistas da época como os autorretratos de claude cahun, a transgressão de georges bataille, o mobiliário de dalí, o erotismo em schiaparelli, a fotocolagem, os trabalhos de man ray, a arte etnográfica, os estudos da arte indígena de els lagrou, entre outros: ensaio sobre a parte maldita cria um debruçar-se sobre o liame entre arte e antropologia para se enroscar em um surrealismo etnográfico que contamina os dias atuais.
Lucas Rodrigues é ator, performer e artista visual. Graduando em Antropologia na UFF e pesquisador da cena contemporânea teatral, no Laboratório de Criação e Investigação da Cena Contemporânea. Coordena o Sem Cabeça Núcleo de Performance, da Companhia Coletivo Sem Órgãos.