Em suas flores do mal, Baudelaire nos delineia a imagem do poeta como chiffonier. No bom português, chiffonier poderia ser traduzido como o sucateiro. O artista seria aquele, portanto, que registra e coleciona o que a grande cidade despreza e busca destruir. Longe de um herói romântico, o herói contemporâneo é operário. Ele não cria nada de novo, tampouco persegue a beleza ou o sublime, apenas recolhe os dejetos da civilização. Leitor de Baudelaire, Walter Benjamin declara que os poetas encontram “na rua o lixo da sociedade e partir dele fazem sua crítica heróica”. Daí o extra-ordinário da arte.
A retrospectiva de Fernanda Gomes na Pinacoteca de São Paulo relampeja a prática da artista em friccionar o uso das coisa, a partir de numa reunião do inservível. Tão improvável quanto afetiva. Os objetos advêm das andanças de Gomes pelas ruas e pelos espaços domésticos. Coisas das mais ordinárias e que são submetidas a operações manuais como amarrar, juntar ou apenas posicionar e espalhar no espaço, desenhando uma expografia da improvisação.
Por meio de um processo meticuloso e imersivo que durou três semanas, a artista fez das salas do museu seu ateliê temporário. O conjunto de obras ao final apresentado oscila entre o prestígio do todo e o labor minudente. O traço pictórico se dá pela cor branca, que atravessa o conjunto de obras. O branco, segundo Gomes, realça a luz e o silêncio, essenciais à fruição dos escombros poéticos em exposição.
Fernanda congrega e conclama o precário e o descartável para o espaço expositivo. O estado decaído das coisas se relaciona nevralgicamente com o estado de sucateamento e fragilidade civilizacionais. O protagonismo de uma estética do precário por vezes leva a perplexidade do olhar. Não por acaso, tem-se a impressão de estar a transitar em uma obra ainda inacabada.. Os trabalhos propostos pela artista não possuem nome, tampouco foram datados, o que acaba por reforçar o caráter de de unidade e, ao mesmo tempo, de estupefação diante dessa solução expográfica.
Longe de uma acumulação caótica de coisas, a artista sucateira desbrava um percurso afetivo, com forte carga subjetiva. O conjunto se transmuta numa experiência instalativa de marca singular, onde o detrito ganha arena de reflexão. Se a sucata se amontoa, é porque o consumo e o descarte avassalam. O sucateamento da matéria ganha novos contornos quando inseridos no âmbito íntimo e interpessoal. A fragilidade das relações humanas que outrora serviu de inspiração à poesia baudelairiana, hoje se equilibra para não se espatifar no picadeiro, enquanto o frágil é substituído pelo vulnerável.
Os pequenos formatos de sucata apresentados por Fernanda revelam ainda o seu interesse pela construção de uma arquitetura afetiva, onde escala e perspectiva são postas em xeque pela precarização dos materiais. O olhar atônito, ao percorrer as sete salas de exposição se recorda de outro poeta contemporâneo de Baudelaire: Stéphane Mallarmé, que certa vez declarou que são
nessas paragens
do vago
em que toda a realidade se dissolve.
Vigiando.
Duvidando.
Rolando.
Brilhando e meditando.
Pietro de Biase é advogado. Participou do Laboratório de pesquisa e prática de texto em arte do Parque Lage. Atualmente, integra o programa Imersões Curatoriais da Escola sem sítio