Quando sentamos na sala de cinema, a amiga que estava comigo reparou que havia uma curvatura no chão. Não era o declínio linear característico em direção à tela de projeção; era uma espécie de parábola que afundava no centro da sala e se reerguia conforme aproximava-se novamente da tela. Havia ali uma zona de rebaixamento total no centro da área das poltronas; um ponto na sala de cinema de descida pontualmente abaixo do nível do mar; uma área de pressão acentuada; um lugar de escuridão onde todos que ali se encontravam se escondiam; um aglomerar nas sombras e no breu que se instaurava entre os tecidos vermelhos e pretos que aspiram a totalidade sensitiva. Ali, entre a entrada e a saída, entre a tela e as costas, um decline para as zonas frias da escuridão e da iluminação simultâneas. Aquela parábola de chão, ali naquela sala, era o alicerce mesmo do nosso vale do cinema.
Começado o filme, vemos em preto e branco e quase em quadrado um navio surgir da neblina a adentrar nosso vale. Nos encontramos vendo O Farol, filme americano, de 2019. Onde estamos, as coisas vêm de cima. O som já se enuncia como costura essencial: não me arrisco a descrever o ruído lancinante do farol, ou das gaivotas, ou do mar, ou dos raios, mas aponto para sua onipresença e seu papel de enunciação total daquilo que os produz. Quase tudo é apresentado enquanto ainda está fora do campo de visibilidade: ouvimos o som do farol antes de ver o farol, o canto das gaivotas antes de ver as gaivotas e assim sucessivamente para todos os elementos que se mostrariam importantes – ou hostis – para os dois personagens principais que se dirigiram à isolada ilha realizar serviços de manutenção do farol. A hostilidade, aliás, essa sim, é típica dos universos em que se propõe uma espécie de influência (e dominação) psicológica perversa do outro.
Há um tema recorrente no vale do cinema de aproximação de uma monstruosidade quase invisível a afetar uma pessoa em especial. É quase invisível, pois apresenta-se por meio de sinais que se traduzem constantemente em sensação de estranhamento, sonhos horríveis, sons angustiantes, mal-estar e desconfiança de enlouquecimento. É especial, a pessoa, pois geralmente se apresenta com caráter insuspeito (quase inocente) dos perigos que se aconchegam ao lado; e é especial, no vale, pois em geral se apresenta como personagem principal. Em O Farol repete-se a tradição. Eventualmente o empregado mais novo enlouquece diante da aproximação dessa entidade que mescla-se como espírito revolto do mar (e de todas as vidas perdidas ali) e a própria figura material do farol, com sua impetuosidade concreta, sua atemporalidade vigia e sua sonoridade dolorosa.
Há uma relação cruel entre a manutenção do farol e a propensão com que este alcança com terror dissimulado. Há uma sensação de domínio que faz com que se cuide da besta que tudo olha. Entra-se pela barriga, vê-se o interior, pensa-se inocentemente que há tal coisa como uma distância segura. Há focos materiais que parecem incorporar a hostilidade brutal da quebrada do mar; uma espécie de epicentro de força que atrai e cria repulsa de acordo com o ritmo da luz. A imponência física se sobressai de tal modo que reafirma o senso de isolamento e a constatação de que se está à mercê das forças que cruzam e se alocam ao vizinho redor. A experiência se revela, aos poucos, como exílio do pânico e da cobiça extrema.
Quando o empregado mais novo finalmente abre as comportas de luz e adentra a cabeça vigilante do farol, tem uma experiência que sugere tensionar as possibilidades de representação cinematográfica. Imagem e som se distorcem. Pensei que se tratava de uma experiência sublime, minha amiga comentou que gostava de pensar ser uma experiência mágica. De fato, o mágico nos chega pelos pés; o breu é nossa neblina, nos apegamos a ele, e dele surgem as experiências-quimeras as quais nos agarramos até que tudo se acabe não tão repentinamente. Há certas coisas que se repetem no vale: a besta invisível, sim; mas também o passado obscuro; a empatia por aquele que desconhece as regras do mundo; a onipresença da sonoridade; a indução coerente que leva do início ao fim; a desconfiança; as percepções do mecanismo evidente ou escondido. Entretanto, talvez nós, que assistimos a isso que vêm de cima, desejemos menos coerência, menos mecanismos, menos sonoridade, menos regras, menos passado, menos indução. Não é isso que nos atrai na luz, afinal?
Quando se trata em representar o mágico, cai-se em uma armadilha própria. O Farol representa sua proposta própria irrepresentável. E termina com indicações da figura de Prometeu tendo seu interior arrancado eternamente por uma águia. Pelas gaivotas, no caso. Diferente de Prometeu, porém, não temos convicção absoluta de que o personagem mais novo está sendo castigado pela sua teimosia ou impetuosidade frente às forças maiores do que ele. Aqui mesmo, parece-nos, há um mecanismo de contemporaneização da história clássica: a culpa é relativa. O personagem foi capturado, mas não parece ter tido chance de sobrevivência ou redenção; a obsessão pela luz advinha de uma loucura induzida pela própria luminosidade. A luz (e a realidade do filme em si), desse modo, nos parece um mecanismo tautológico de enlouquecimento prazeroso, uma experiência mágica, e sublime e, acima de tudo, corpórea.
Há uma brutalidade visual e sonora exponencial que transcende o universo do filme a procurar nos atingir diretamente. Há uma constante oposição à apresentação anacrônica que tenta oferecer um outro lado da experiência retroativa. O preto e branco, a imagem quase quadrada, a temática dos perigos do mar, eis a estrutura que se apresenta como forma de revisitação marcada, explícita. Essa recitação contextual é costurada, porém, por um igualmente explícito desejo de reafirmação da contemporaneidade do filme. A escolha por Robert Pattinson, que faz o empregado mais novo (o personagem principal) tem papel fundamental no desejo de criar um buraco entre representação de época e as feridas do mundo contemporâneo, que penetram às vezes sutilmente, às vezes incisivamente.
Ainda sobre Robert Pattinson, é figura ainda atrelada à saga Crepúsculo. Atualmente há um crescente interesse em sua figura de atuação. Sua presença no filme remete a um desejo de intransitividade do próprio estatuto cinematográfico. Não à toa, nos parece, Willem Dafoe, que faz o papel do empregado ancião que conta histórias do mar, é supersticioso e demonstra temeridade diante do desconhecido e, acima de tudo, atém-se a um estilo anacrónico de atuação que se apoia em um foco e potência dos dizeres e das ameaças faladas contínuas – sem cortes. Pattinson, por outro lado, fala pouco, é confuso, não conhece a tradição e oferece meios menos convencionais de atuação, como quando lambe a chuva ou bate palmas de forma ridícula depois de quebrar o amuleto da sereia.
A dinâmica entre os dois personagens demonstra o desejo contraditório da revisita, que é sempre tensionado; explícito também em pontadas do absurdo representativo. Há certas cenas – como o enterro vivo do funcionário mais velho; encontro mágico com o farol; o assassinato brutal e explícito de um pássaro; e os encontros de cunho sexual entre sereias e Pattinson – que procuram trazer o filme para uma atualizada aterrorização que é remetida na própria sala de cinema, no nosso próprio vale. A luz como inimiga invariavelmente nos leva à constatação de que querer ver demais pode ser mortal. Édipo e sua eventual cegueira tratam, porém, mais do que do conhecimento que não deve ser cobiçado. Confabulam também sobre a impossibilidade de assimilação destas mesmas informações e de um mundo perspectivado por meio delas.
Como contraponto (e negação) à cegueira, O Farol se apoia no desejo de uma intransitividade representativa total que está, porém, inserida em dinâmicas consolidadas emprestadas do cinema experimental e, em menor escala, do teatro do absurdo. O empregado mais velho refere-se ao mais novo como um livro aberto onde tudo é explícito e não há segredos; onde tudo é visível. O farol é essa potência de iluminação, mas também a reafirmação da ocultação. A luz é direcional, circular e rítmica. A majestosidade do fresnel vem também de sua revelia consciente de tudo que ocorre no escuro. O ritmo da luz, o ritmo em si, também é mágico. O que não se vê, o que não se ilumina, é a monstruosidade à espreita; mas ela também é o que se vê, o que está iluminado. O funcionário mais velho parece ter entrado em paz com esta constatação enquanto o mais novo foi seduzido pela dicotomia da negação-cobiça total das forças ocultas do mundo. Pattinson é para nós espectadores, dessa forma, a própria dicotomia do cinema que se pretende alcançar. É a oposição mesma às escolhas estéticas marcadas e às escolhas narrativas clássicas. Vê-se tudo no livro, mas sabemos: não há somente as palavras. Nos oferecer Pattinson no elenco de O Farol é nos oferecer internamente e analogamente os desejos contraditórios de um mundo conhecido e desconhecido; a cobiça e a negação simultânea dela; a visibilidade total e sua recusa; a armadilha sem saída; a potencialidade que se deseja mágica; a acidez desta mesma magia; e as escolhas já feitas numa espécie de eternidade representativa do filme que remete como ferramenta de trazer ao presente contraditoriamente a sua própria interioridade e exterioridade.
Gabriel Fampa é graduado em Ciências Sociais pelo IFCS e mestre em Linguagens Visuais pela Escola de Belas Artes (UFRJ), tendo integrado o programa de formação Práticas Artísticas Contemporâneas da EAV / Parque Lage. Vive e produz no Rio de Janeiro.