Ana Mendieta (1948-85) é dessas artistas cuja biografia funciona como elemento referencial para a obra. Com apenas 12 anos de idade, a cubana e a sua irmã foram enviadas aos Estados Unidos como parte da operação Peter Pan (que retirou entre 14 e 25 mil crianças de Cuba sob tutela de organizações religiosas estadunidenses). Ana cresceu em Iowa, meio oeste, território marcado pelo conservadorismo e pelo racismo. Sobre esse contexto a artista afirma:
“No meio oeste, as pessoas olhavam para mim como um ser erótico (o mito da latina ardente), agressivo e de certa forma diabólico. Isso criou em mim uma atitude muito rebelde, até que, por assim dizer, explodiu dentro de mim e tomei consciência do meu ser, da minha existência como um ser particular e singular. Essa descoberta foi uma maneira de me ver separada dos outros, sozinha.”
Sendo assim, sua obra estará fortemente influenciada pelo seu contexto político-social e podemos, dentro da sua produção, identificar duas etapas. A primeira, vinculada ao feminismo (porém desconectada do feminismo institucionalizado), onde a artista expõe o seu corpo para falar do âmbito social e da violência de gênero causada por este. E a segunda, onde a artista explora o corpo como ritual através da conexão com a natureza e com o mundo ancestral latino-americano.

Da primeira etapa são obras como Impressões de vidro sobre corpo (1972) onde uma placa de vidro pressionado contra o seu corpo o oprime, limita e deforma; e Sem título (Cena de estupro) (1973) onde a artista, consternada pelo brutal estupro e assassinato de uma estudante da Universidade de Iowa, se converte em uma vítima anônima ao colocar o seu próprio corpo, manchado de sangue, amarrado a uma mesa. A ação durou cerca de uma hora com Mendieta atada na mesma posição. O público, ao mesmo tempo em que se sensibiliza com a imagem, se transforma em cúmplice do crime.

Sobre a representatividade dos movimentos feministas da época e, no âmbito de uma exposição, a artista afirmou:
“Durante a década de 1960, as mulheres nos Estados Unidos se politizaram e se uniram ao movimento feminista com a intenção de acabar com o domínio e a exploração da cultura do homem branco, mas se esqueceram de nós. O feminismo americano, tal como é, é basicamente um movimento de classe média branca. Como mulheres não brancas, nossas lutas são em duas frentes. Esta exposição não indica necessariamente a injustiça ou a incapacidade de uma sociedade que não quis incluir-nos, mas sim uma vontade pessoal de continuar sendo “outro”.
Progressivamente, Mendieta irá utilizar o corpo como matriz para uma nova reflexão sobre a sua condição de mulher latina nos Estados Unidos. Nessa segunda etapa, a artista resgatará conceitos e crenças provenientes da cultura Taina, desaparecida desde a colonização espanhola em Cuba, e das culturas pré-colombianas da Mesoamérica. Esse interesse surge a partir das suas viagens de estudos a Oaxaca, México, onde entrou em contato com os sítios arqueológicos pré-colombianos e desenvolveu uma nova relação com o sagrado, com as culturas originárias e a natureza. As viagens ao México seriam o ponto de partida e inspiração para a sua famosa serie Silhueta (1973-80).

Em Imagem de Yagul (1973) a artista se situa em uma tumba asteca, nua e deitada diretamente sobre a terra, mimetizando-se com esta. Dessa forma, corpo e natureza se transformam em uma só matéria da qual, literalmente, floresce vida. A obra faz alusão as antigas crenças mesoamericanas onde não havia a oposição trágica entre a vida e a morte, senão que, como num fluxo contínuo, a morte era uma prolongação da vida.
“Tendo sido arrancada da minha terra natal durante a adolescência, estou oprimida pela sensação de ter sido expulsa do útero. Minha arte é a forma em que restabeleço os laços que me conectam ao universo.”, afirmou a artista.

Em seu intitulado earth-body art, ao utilizar o corpo como matriz que atua diretamente sobre a paisagem, a artista resgatará o poder criativo da natureza em seu estado mais puro, gerando obras de um ritmo orgânico e caráter efêmero. Além de aludir ao próprio corpo da artista, suas silhuetas (marcas temporárias deixadas na natureza) aludem a deusas originárias que dialogam com o universo. Através desse processo de autotransformação, Mendieta se fusiona com a natureza, suprimindo a sua própria individualidade e aproximando-se às raízes do mundo, ao Uno primordial. Essa idéia é plasmada com clareza na serie Árvore da vida.

Ana Mendieta terá a sua vida (e sua potente carreira) interrompida de forma trágica, aos 36 anos, vítima de um crime que ela mesma chegou a denunciar em suas obras: o feminicídio. Empurrada do 34º andar pelo seu marido, o artista minimalista Carl Andre, a justiça pela sua morte nunca foi feita já que Carl foi absolvido (e continua livre até hoje, com 84 anos).
“Não existe um passado original que deva ser redimido: existe o vazio, a orfandade, a terra sem batismo dos inícios, o tempo que nos observa do interior da terra. Existe acima de tudo a busca pela origem”. – Ana Mendieta
Fonte de pesquisa e citas: “Trazas de cuerpo-huellas que obliteran improntas” por Lynda E. Avendaño Santana.
Vanessa Tangerini é carioca e suburbana. Ex-aluna do Pedro II e da EBA (UFRJ). Cursa a Licenciatura em Curadoria e Historia da Arte na Universidad del Museo Social Argentino em Buenos Aires, Argentina. Atualmente desenvolve sua pesquisa na área de Curadoria e Educação