Para Adrif, minha amiga, minha eterna saudade.
“o que se passa na cama é segredo de quem ama”
Carlos Drummond
De acordo com o dicionário Houaiss, leito pode significar cama; solo fundo de curso d’água; ou – o meu preferido – superfície que serve de base. Assim, as camas serviram de base para importantes personagens ao longo da história da arte. Do olhar mitológico da Vênus de Urbino (1534), de Tiziano, ganhando altivez em Olympia (1863), de Manet, as camas deram suporte a muitos corpos femininos desnudos ao convite do olhar masculino. Após percorrer o expressionismo de Van Gogh, o leito foi içado à plataforma político-conceitual pacifista. Em 1969, no auge da Guerra do Vietnã, Yoko Ono e John Lennon realizaram dois protestos pacíficos de uma semana no conforto de suas camas de hotel em Amsterdã e em Montreal. Ainda que não pensadas necessariamente como performances, as Bed-ins for Peace (Camas pelas paz), como ficaram conhecidas, atraem questões caras ao pensamento- o que é público e o que é privado, e o que constitui um protesto – ressignificando uma peça do mobiliário doméstico.
A ação revolucionária proposta por Ono e Lennon inaugurou um novo momento para as camas. Para além de elementos secundários nas obras, os leitos se tornavam veículos independentes de discursos políticos e existenciais. De coadjuvantes a protagonistas de outras – novas- histórias. Sempre enlaçadas a narrativas sobre o corpo Como espaço de nascimento, amor, doença e morte, os leitos são possivelmente um dos elementos mais reproduzidos na história da arte e uma das metáforas mais comuns à condição humana. A grande maioria das pessoas nasce em camas; pode-se até conjecturar que o milagre da vida é operado majoritariamente sobre elas.


A artista estadunidense Nan Goldin fotografou muitas camas nos seus relicário de vivências íntimas, registro enternecido de suas trocas com minorias e artistas. Para Goldin, somente a fotografia pode reiterar a presença humana. Ainda que desencarnada. O rastro provocado pela passagem de seres humanos sobre a cama sugere uma presença efêmera. Dos encontros casuais em um tempo de profundas transformações sociais. Uma crônica febril das relações humanas contemporâneas e crítica intrínseca a padrões burgueses e puritanos. A cama, como uma memorabília afetiva, guarda os segredos daqueles que por ela passam. Para a crítica Ligia Canongia, ainda que a obra de Goldin esteja focada em pessoas, os espaços vazios operam como retiro para autopreservação. Um exercício de captura da ausência.

Au Naturel apresenta alguns dos projetos mais importantes da artista Sarah Lucas, que, ao inserir partes relacionadas ao corpo humano sobre o mobiliário doméstico, tensiona o debate a respeito do sobre gênero e poder. Com loas ao legado do surrealismo – de suas inteligentes intervenções com objetos do cotidiano, à exploração da ambiguidade sexual entre o familiar e o estranho e desorientador, Lucas constrói uma anatomia do desejo a partir da operação com a mobília.

Contemporânea de Lucas e também associada ao movimento Young British Artist (YBAs), Tracey Emin renovou o que se conhecia por arte confessional, ao transportar sua própria cama para uma instituição de arte. A artista concebeu a instalação, intitulada My Bed, após um longo período acamada devido a uma depressão. À época da montagem – e até hoje- a obra provoca diferentes reações no público. Lenços de nariz usados, roupas manchadas, cigarros, garrafas vazias de vodka, um teste de gravidez, lubrificante e preservativos cercam a cama. O curador de Tate Liverpool, Darren Pih, descreveu o trabalho como uma “forma de assemblage artística” que “quase se assemelha a uma cena de um crime”. A cama de Emin oferece uma perspectiva feminina sobre a vulnerabilidade; seu trabalho eleva as ansiedades da vida como mulher a uma monumentalidade totêmica.

2 em 1 é um manual de marcenaria proposto por Jonathas de Andrade para a montagem de uma cama de casal a partir de duas camas de solteiro. Ao conduzir o olhar do espectador para o processo da construção da nova cama, o artista desenvolve uma narrativa pessoal acerca do labor manual. O percurso pelas etapas da montagem esquadrinha os desafios da convivência na contemporaneidade. A única presença humana aparente na obra são os trabalhadores negros encarregados da adaptação das camas. A invisibilidade do labor manual, quase sempre produzido por corpos negros, atrai forte carga política ao trabalho de Andrade que se vale de uma estrutura simples para friccionar questões de um passado colonial.

Na videoinstalação Caça-níquel, o artista paulistano Otávio Barata apresenta um acervo de textos e imagens pessoais. Colhidas pelo próprio artista a partir de fotos de camas onde dormiu, trechos de diário e conversas tidas em redes sociais, textos e imagens se intercalam construindo um itinerário confessional, tal como na obra seminal de Emin. As imagens das camas de Barata, apesar de relampejarem lembranças individuais, como em My Bed, se descobrem mais como lugares de tranquilidade e segurança em meio da sofreguidão dos intercâmbios virtuais.
De acordo com dados da OCDE, passamos uma média de 227.468 horas (ou seja, 26 anos) dormindo sobre uma cama. Se contarmos o tempo que dispensamos tentando dormir, algo em torno de 7 anos, alcançamos os bíblicos 33 anos dedicados apenas ao sono. Um objeto mais do que familiar para a criação artística.
A história dos leitos se associa ao mise en abyme. Marcada por abandonos e retomadas. Talvez o item do mobiliário doméstico que mais tenha sido antropomorfizado. E, por nos acharmos seguros, encontramos nas camas um diário de algodão, que acolhe a dor e a delícia da existência humana. Do gozo ao último suspiro. Trampolim dos sonhos. E dos pesadelos. Navio de aventuras impublicáveis. Cama. Base.
Pietro de Biase é advogado. Participou do Laboratório de pesquisa e prática de texto em arte do Parque Lage. Atualmente, integra o programa Imersões Curatoriais da Escola sem sítio