Talvez tão importante quanto refletir o porquê de falar sobre questões raciais agora seja analisar como um produto do duo colonialidade/modernidade ainda se faz presente na dinâmica social de sujeitos afro-diaspóricos. O racismo constitui o principal legado da escravidão latente e funciona como regime discursivo cujo objetivo é o exercício da economia do biopoder, possibilitando as atividades assassinas do Estado. O negro, portanto, seria um ser-outro, cuja existência é justificada pela objetificação.
Trata-se, indubitavelmente, de uma estrutura originada no sistema de plantation que situou os negros em situação de escravidão em uma terceira zona, entre o estatuto de sujeito e objeto. Justificado por um sistema jurídico-legal, o mais perverso exemplo da dominação de corpos ocorre com a chamada necropolítica. O delito juridicamente definido como genocídio tem sua raiz no racismo, pois ele opera um corte ontológico e promove um processo de naturalização da desumanização.
Nesse contexto, emergem critérios como o índice facial, desenvolvido para justificar uma suposta correlação entre a conformação craniana e a capacidade mental. Com o positivismo criminológico, portanto, elaborou-se uma teoria segundo a qual a possibilidade de mudança ou “evolução” é impossível, tendo em vista que os fatores biológicos condicionantes são imutáveis. Em Antropologia do Negro I e II (2014), o artista Paulo Nazareth apresenta os desdobramentos de sua pesquisa com o acervo do Museu Antropológico e Etnográfico Estácio de Lima (MEL), fechado desde 2005 e reaberto devido à iniciativa da 3ª Bienal da Bahia (2014), realizada 46 anos após a sua última edição, a qual foi fechada pela censura da ditadura militar. Os vídeos em preto e branco, não por acaso, apresentam Nazareth deitado sob uma pilha de crânios, misturando-se aos vestígios de humanidade restantes.


Em Antropologia do Negro I, uma pessoa posiciona os crânios sobre e ao redor do corpo do artista: é possível observar seu gesto mínimo, apenas o movimento de sua respiração em meio ao que o circunda e o envolve até o momento de retirada desses vestígios. Antropologia do Negro II, por sua vez, remonta a cena a partir da autonomia do artista, que não mais precisa de ajuda: Nazareth, também deitado, reproduz o mesmo processo, gerando ainda mais aflição ao manusear um material duradouro e, ao mesmo tempo, tão frágil.
O MEL foi inaugurado em 1958, na cidade de Salvador, a partir dos estudos de Nina Rodrigues, médico que se baseou em pressupostos do evolucionismo social e da Escola de Criminologia Italiana para articular um racismo científico no país. Nesse sentido, os ossos sob os quais o corpo do artista repousa são crânios de quaisquer pessoas racializadas, rejeitadas enquanto significantes de atualização do Sujeito. Corpos que continuam amontoando-se, vítimas de um Estado que encontra na violência racial a figuração do excesso.
Referências Bibliográficas
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n -1 edições, 2018, 2ª ed.
MIYADA, Paulo [org.]. AI-5 50 anos: ainda não terminou de acabar, p.409. São Paulo: Instituto Tomie Ohtake, 2019
Andressa Rocha
É bacharel em História da Arte pela Escola de Belas Artes da UFRJ, crítica de arte e arte-educadora. Desenvolve pesquisa acerca da presença do legado antropofágico no fim do projeto moderno e a continuidade e inflexão diferencial na obra de artistas afrobrasileiros.