Agora deixa o livro
volta os olhos
para a janela
a cidade
a rua
o chão
o corpo mais próximo
tuas próprias mãos:
aí também
se lê 1
O contexto de pandemia tal como enfrentamos provocou algumas mudanças em nosso modo de estar no mundo: a mão tornou-se veículo de propagação do vírus, limitando assim o contato no estabelecimento de relações com outras pessoas e, sobretudo, evidenciando a sua importância como mediadora de algumas experiências. Nesse contexto, partindo da mão como instância também capaz de comunicar, cabe ressaltar a obra Untitled (for Jeff), de Felix Gonzalez-Torres. Nesse trabalho, o artista nos apresenta uma mão apoiada em um fundo branco e emoldurada, emoldurada por um outdoor. A sobriedade cromática reflete a simplicidade do gesto e é evidenciada por mimetizar a paisagem circundante. O observador é compelido a inferir a obra, o vazio provoca um incômodo inicial. Vazio provocado pelo fundo branco ressaltado, vazio pela ausência de mensagem típica do outdoor, vazio oriundo de um não entendimento do que é exibido inicialmente. Há aqui um jogo entre o visível e o que é visto.

O cerne da proposição artística de Felix reside na intersubjetividade, no processo de comunicação da figuração de uma relação inter-humana. A valorização da experiência na concepção do trabalho é potencializada pela dimensão psicológica suscitada pela presença do ausente. A solidão, nesse sentido, proporciona a rememoração de um sentimento intenso em uma estruturação da forma que contrasta com seu conteúdo trágico implícito. A formação do outro e, posteriormente, a constituição de sua memória deriva de um reconhecimento de sua identidade pelo espectador, testemunha da sobrevivência do afeto.
A diluição da diferenciação entre a esfera pública e privada não é uma questão: o que se torna tangível é o desejo do artista de que outros públicos possíveis para arte estabeleçam uma relação de contato com a obra, ainda que mediada por uma reação de estranhamento. Talvez seja possível afirmar que a vibração da proposição de Felix decorre justamente da vulnerabilidade muitas vezes negada, mas assumida aqui como potência. A obra como índice de significação com ênfase na afetividade afasta-se do conceitualismo canônico em ambos os casos. O procedimento em termos de harmonia formal do registro poético institui assim o elo entre a obra e a sociedade.
Referências Bibliográficas
1 MARQUES, Ana Martins. Último Poema. In: O livro das semelhanças, p. 29. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

Andressa Rocha
É bacharel em História da Arte pela Escola de Belas Artes da UFRJ, crítica de arte e arte-educadora. Desenvolve pesquisa acerca da presença do legado antropofágico no fim do projeto moderno e a continuidade e inflexão diferencial na obra de artistas afrobrasileiros