Para Rafa
“Para quem quer se soltar
invento o cais
Invento mais que a solidão me dá”
Milton Nascimento, em Cais
“As palavras sustentam o céu.
Ó, céu: dai-nos serem gentis.”
Job Sipitali, em Raízes cantam
Um espectro nos ronda: o luto. Por entre as nesgas do tecido social, esgarçado, o luto penetra nos ferindo, de mansinho, com a luz da eternidade. Diferente de muitos sentimentos, o luto não tem rosto. Seus predicados são idiossincráticos e altamente subjetivos. Uma estrada deserta pela qual se percorre apenas sozinho. Pelo luto, experienciamos o vazio silêncio da espécie. Na lavra desse tempo condoído, nos transladamos. E em velocidade amorfa, singramos rumo a um tempo do alentecimento. Nesse tempo, habita a obra de Rodrigo Braga.
O artista pernambucano se confirma como um dos mais profícuos agricultores da imagem de sua geração. Retoma-se aqui o conceito batizado por Jeff Wall de “fotógrafo agricultor”, como aquele que constrói suas imagens a partir de ideias concebidas previamente. Um tipo oposto ao “fotógrafo caçador” de Ansel Adams, pronto a capturar o imediatismo de um instante. Nas lavouras de Braga, alegorias da solidão. Sob diferentes perspectivas, o artista constrói imagens de cunho híbrido que reforçam o esfacelamento da identidade e do sujeito estável, estóico.
Tudo que é líquido lhe chama. Não por acaso, o elemento morte surge na obra de Braga como moderador de um discurso. Longe de um ente fantasmagórico, a morte emerge como cifra do tempo expandido. A chave de força que permite a sobrevivência do mundo. O artista arremeda o ciclo vital, a partir de metáforas imagéticas, que deslocam, transmutam, associam vestígios vegetais, corpos de animais e do seu próprio corpo do seu contexto original. Um exílio forçado de pessoas, coisas e lugares.
Frente ao impossível, o luto. Frente ao possível, o sonho.
Desejo Eremita (2009), segundo Braga, partiu de uma “necessidade imanente de constituição de um espaço-tempo diferente daquele rotineiro da metrópole”. Nesse tempo dilatado, ele imaginava vivenciar uma nova experiência – “ligada aos aspectos mais crus e ritualísticos do ambiente natural”. Nesta série produzida no Município de Solidão, no Sertão do Pajeú pernambucano, o artista investiga os limites do simbólico em meio à aridez. Ou, como a vida se reorganiza a partir da morte.
A dança entre vida e morte ganha ritmos ainda mais acachapantes na série Biomimesis (2010-2014), produzida nos três estados onde o artista teve residência: Amazonas, Pernambuco e Rio de Janeiro. Por meio de construções miméticas, de voltagens ora surrealistas ora conceituais, Braga colhe suas imagens do além. A fusão entre diferentes elementos do mundo natural, já sem vida, reconfigurados, refundam o discernimento do olhar, oferecendo um legado do e para o imaginário.
Mergulhar no arbítrio da solidão é repactuar as bases com a nossa própria humanidade. Para Freud, a felicidade não se encontra no plano da criação. É, portanto, necessário inventá-la. De suas pesquisas clínico-legistas, Braga demonstra propensão e competência para a mudança, ainda que saiba a inequívoca dor de encontrar aquilo que procura. Ancorado na isotopia do sofrer (solidão, morte, luto, ausência) e da transmutação (metamorfose, mimesis, simbiose) o artista inventa o mundo. E este lhe sorri.

Pietro de Biase é advogado. Participou do Laboratório de pesquisa e prática de texto em arte do Parque Lage. Atualmente, integra o programa Imersões Curatoriais da Escola sem sítio.
Sensacional a crítica e a obra de Rodrigo Braga. De fato, o luto só nos alivia se transformado pelo outro que ficou em nós, em arte. Parabéns Pietro!
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